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Feminismo e os Direitos da Mulher

Estamos hoje a viver um momento conturbado a um nível global. A cada dia que passa, vemos as sociedades a cair, cada vez mais, no discurso populista da extrema-direta. E sejamos francos, a demagogia como ferramenta favorita de certas forças políticas, leva à cegueira cívica das populações. Cair no discurso do medo acentua as desigualdades e legitima a lógica falaciosa dos opressores. Os mais vulneráveis, os oprimidos, esses ficam sempre na corda bamba da inépcia e apatia de quem consente o atropelo aos Direitos Humanos.

As sociedades evoluem devagarinho. E mais devagarinho ainda quando há um desvio no caminho do progresso. E esses desvios são quase sempre iguais. À primeira vista encantadores; depois vêm as pedras, as serpentes, as ervas daninhas no chão e, por fim, as areias movediças. Só então percebemos que temos de voltar para trás e fazer o caminho que era suposto, sem desvios.

Na América temos o "desvio" mais mediático dos últimos tempos: Donald Trump. Os seus posicionamentos sexistas não são novidade. No entanto, a CNN divulgou que, do eleitorado feminino, 42% das mulheres votaram nele. Na visão dos especialistas que analisaram o caso, os eleitores de Trump deram prioridade às promessas do então candidato nas questões da economia, do emprego, das migrações e do terrorismo. Os Direitos Humanos passaram ao lado e foram remetidos para o fim da lista. No que toca aos Direitos das Mulheres, em particular, o resultado é evidente: políticas anti-aborto; corte de financiamento a programas de combate à violência de género e a associações de planeamento familiar.

Outra polémica que está a dar que falar é a do eurodeputado polaco Janusz Korwin-Mikke,  que afirmou no Parlamento Europeu que as mulheres devem ganhar menos do que os homens porque "são mais fracas, mais pequenas e menos inteligentes".     

Estes exemplos são apenas os mais recentes e os mais polémicos. Mas é urgente compreender que são casos como estes que abrem a porta à epidemia de retrocessos.

Por ser hoje o Dia Internacional da Mulher, é de importância máxima "remar contra a maré" dos últimos tempos e afirmar a luta feminista como um processo crucial, não só para travar os abusos, mas também para transformar mentalidades, forçar ao progresso, por uma sociedade mais justa, mais igual e mais democrática.

O grande problema do feminismo é que muitos não compreendem a sua essência. Plantar a ideia de que o feminismo é a inversão do preconceito é conveniente a quem ainda partilha as ideias patriarcais e machistas, pois dispersa a luta pela igualdade de género. Hoje vemos o medo de muitas pessoas se associarem ao termo. Optam por se apelidarem de "humanistas". Atrevo-me a dizer que o termo é bonito, mas vago e na luta pela conquista dos direitos sociais não há espaço para ambiguidades.

É preciso desconstruir o argumento de que a luta feminista é contra os homens, até porque um homem também pode ser feminista. É essencial afirmar e repetir as vezes que forem necessárias, que a luta feminista é simplesmente a luta pela igualdade. Nem mais, nem menos. Qualquer pessoa que diga o contrário e que acrescente radicalismos ao conceito, está simplesmente a distorcer o movimento e a falar em nome de ideais próprios.

Ninguém deve ter medo de se assumir como feminista e de se juntar ao movimento que, de radical, não tem nada e não pretende, de todo, criar uma nova forma de sexismo. Dizer, como já cheguei a ouvir em marchas pelo direito à igualdade, que " defendo os direitos das mulheres, mas não sou feminista", não pode ser uma realidade. Defender os direitos sociais  na teoria é fácil e pouco impacto tem. Integrar a luta e exigir o fim da discriminação de género é que é mais difícil. Costumo dizer que defender os nossos direitos na teoria e no vazio da subjetividade é fugir para território neutral. E fugir para território neutral é validar o lado do opressor.

Na atual sociedade portuguesa, a mulher ainda ganha menos que o homem; ainda tem menos oportunidades de emprego; ainda é remetida para a função doméstica; ainda está condicionada por cotas para poder ocupar certos cargos profissionais; ainda está sub-representada nos espaços de poder e tomada de decisão.

Ainda em relação às cotas nos espaços laborais, é importante ressaltar que estas são um processo temporário até que a verdadeira igualdade de género seja uma realidade. Quantas vezes não ouvimos da boca de alguém que podemos estar a roubar o lugar a um homem que talvez fosse melhor a desempenhar o cargo. Só a violência dessa afirmação já explicita uma postura machista, que coloca a mulher num patamar inferior, como se fossemos, sempre, menos capazes.

Só o facto de a Lei da Paridade existir já é uma humilhação em si, pois se a igualdade de género fosse uma realidade, nem sequer haveria necessidade de criar tal processo. Ainda assim, estamos a falar de uma lei que representa o combate ao sistema que dá prioridade à figura masculina. Mas não há ninguém que queria mais o seu fim do que uma mulher, pois uma sociedade  sem Lei da Paridade, imposta pela força das circunstâncias, é uma sociedade mais evoluída. E é preciso que todas estas questões, mal compreendidas pela maioria, sejam esclarecidas.

Defender os Direitos das Mulheres com palavras, não basta. É preciso ação concreta. E parte desta ação passa por não legitimar forças políticas que condicionem a nossa auto-determinação, a nossa liberdade, a nossa autonomia. Passa por barrar totalmente qualquer rastilho de opressão. Passa por recusar a separação entre o "eles e nós" e lutar também em nome de quem ainda vive na sombra da sujeição, tanto no nosso contexto social, como em outros.

Neste dia tão especial e tão importante, não basta celebrar as conquistas do passado como o direito ao trabalho, o direito ao voto e à participação política ou o direito ao aborto. Muito está ainda por fazer, não só em Portugal, mas em muitos lugares do mundo, onde as mulheres ainda são submissas aos homens, onde ainda existe mutilação genital feminina ou onde a violência doméstica e a violação sexual não são considerados crimes.

Basta de nos contentarmos com pouco e chamar as migalhas de vitórias. Chega de nos termos de esforçar o dobro para ter a mesma credibilidade que um homem. Basta de sermos reféns da mentalidade conservadora e mesquinha, que nos inferioriza ao mínimo conflito político, à mínima crise económica. Os nossos direitos não podem voar ao sabor do vento. Não somos coisas, somos seres humanos. Queremos igualdade, queremos respeito e exigimos dignidade. Chega de sexismo, de rebaixamento, de humilhação.

Das duas uma: ou vivemos juntos e construímos uma sociedade racional e coerente, ou morremos separados pelo preconceito, como um bando de idiotas.